quinta-feira, 15 de outubro de 2009

O novo do Saramago

Vários anos após o lançamento do monumental Evangelho segundo Jesus Cristo, José Saramago retorna agora à escrita bíblica - desta vez com o Antigo Testamento. 
As imagens das capas acima pertencem, respectivamente, às edições portuguesa, brasileira, espanhola e catalã, e foram disponibilizadas pela Fundação Saramago.
Em Caim, novo romance do autor português, para além das marcas constantes de sua obra (ateísmo, ironia, longos parágrafos, pontuação inusitada, etc.), chama a atenção o fato de todos os nomes, incluindo aí Adão, Eva, Deus, Caim, serem grafados com letras minúsculas. A exceção que confirma a regra fica para Pilar, a esposa do escritor, na dedicatória do volume: "A Pilar, como se dissesse água".
A relação do casal poderá, ainda este ano, ser vista não apenas através das belas dedicatórias mas em cores e tela grande. União Ibérica (título provisório), documentário de Miguel Gonçalves Mendes que acompanha o cotidiano do casal em Lanzarote e suas viagens pelo mundo durante o período de preparação e lançamento de A viagem do elefante, já está em fase de finalização e deve chegar aos cinemas nos próximos meses. Veja o trailer: 
 
  
E, voltando a Caim, confira aqui o primeiro parágrafo do romance, publicado hoje cedo pelo site português Bibliotecário de Babel:

«Quando o senhor, também conhecido como deus, se apercebeu de que a adão e eva, perfeitos em tudo o que apresentavam à vista, não lhes saía uma palavra da boca nem emitiam ao menos um simples som primário que fosse, teve de ficar irritado consigo mesmo, uma vez que não havia mais ninguém no jardim do éden a quem pudesse responsabilizar pela gravíssima falta, quando os outros animais, produtos, todos eles, tal como os dois humanos, do faça-se divino, uns por meio de rugidos e mugidos, outros por roncos, chilreios, assobios e cacarejos, desfrutavam já de voz própria. Num acesso de ira, surpreendente em quem tudo poderia ter solucionado com outro rápido fiat, correu para o casal e, um após outro, sem contemplações, sem meias-medidas, enfiou-lhes a língua pela garganta abaixo. Dos escritos em que, ao longo dos tempos, vieram sendo consignados um pouco ao acaso os acontecimentos destas remotas épocas, quer de possível certificação canónica futura ou fruto de imaginações apócrifas e irremediavelmente heréticas, não se aclara a dúvida sobre que língua terá sido aquela, se o músculo flexível e húmido que se mexe e remexe na cavidade bucal e às vezes fora dela, ou a fala, também chamada idioma, de que o senhor lamentavelmente se havia esquecido e que ignoramos qual fosse, uma vez que dela não ficou o menor vestígio, nem ao menos um coração gravado na casca de uma árvore com uma legenda sentimental, qualquer coisa no género amo-te, eva. Como uma coisa, em princípio, não deveria ir sem a outra, é provável que um outro objectivo do violento empurrão dado pelo senhor às mudas línguas dos seus rebentos fosse pô-las em contacto com os mais profundos interiores do ser corporal, as chamadas incomodidades do ser, para que, no porvir, já com algum conhecimento de causa, pudessem falar da sua escura e labiríntica confusão a cuja janela, a boca, já começavam elas a assomar. Tudo pode ser. Evidentemente, por um escrúpulo de bom artífice que só lhe ficava bem, além de compensar com a devida humildade a anterior negligência, o senhor quis comprovar que o seu erro havia sido corrigido, e assim perguntou a adão, Tu, como te chamas, e o homem respondeu, Sou adão, teu primogénito, senhor. Depois, o criador virou-se para a mulher, E tu, como te chamas tu, Sou eva, senhor, a primeira dama, respondeu ela desnecessariamente, uma vez que não havia outra. Deu-se o senhor por satisfeito, despediu-se com um paternal Até logo, e foi à sua vida. Então, pela primeira vez, adão disse para eva, Vamos para a cama.»

[in Caim, Caminho, 2009]

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